Disseram-lhe que um homem não pode viver de palavras. São imateriais. Porém, as folhas que o cercam agora formam ao seu redor uma graúda pilha de histórias. Papeis desorganizados compondo um círculo em que ele está no centro, nu, observando a própria criação. Será assim seu suicídio.
Decidiu embriagar os papéis de gasolina e realizar duas demonstrações ao mesmo tempo. A primeira, de que as palavras podem ser tocadas, ainda que dependa de alguém vivo para lhes dar sentido. A segunda, a confirmação de que, ao transformar-se em cinza, chegará a algum lugar. A morte é sua razão.
O diário íntimo que escrevera durante anos foi duplicado e guardado para Sara e Marina. A esposa e a confidente serão as portadoras de sua verdade.
Tem trinta e dois anos e, neste momento, o cheiro do combustível causava náuseas. Ainda não teve coragem de embeber o próprio corpo. Ainda contempla-o. A disposição das carnes, as marcas do tempo, os pêlos que parecem trafegar em sentido próprio. Toca o sexo, pensando que, além das mãos, foi a parte que mais lhe deixou feliz.
Tem esperança de que seja lembrado por esse diário. Teve medo. Desnudou-se em um diário narrativo que guardou para si. Quando seu corpo tiver consumido pelo fogo, e a fumaça impedido de respirar, ele acredita que renascerá naquelas palavras.
Mentalmente recorda uma breve lista de escritores que alcançaram o sucesso após a morte. Deseja, por um instante, ganhar uma sobrevida. Mais um dia vivo, após a morte, escolhido previamente, para que retorne e encontre a resposta para alcancei meu objetivo?
Não bebeu. Não fumou. O escritório está bem arrumado. Foi conveniente encontrar este imóvel dois anos antes como sua fortaleza. Poderá morrer sem causar a dor imediata à esposa. Não deixará na residencia marcada pelo afeto a tristeza de uma vida interrompida, desintegrada no soalho de algum dos cômodos, um círculo que nem a limpeza mais rígida apagaria.
Lamenta-se por não ter lido a obra completa de Dickens. Pensa em escrever um bilhete mandando Joyce à merda. Não que o escritor tivesse culpa, odeia quem o transformou em literatura para iniciados.
Sobre a mesa, distante da cena composta para o suicídio, há uma lista de amigos que dividirão sua biblioteca. Quinze pessoas ficarão com seus espólios. Alguns por provocação, outros pelo apreço aos escritores.
A poesia irá para um amigo antigo e um velho professor que juntos lhe ensinaram o amor pela lírica. Os livros de teoria que sempre foram inúteis irão para a biblioteca da universidade. Quem sabe, após o fogo, não lhe deem uma pequena sessão com seu nome. Livros lidos pelo autor falecido, formando da década de noventa na universidade.
A prosa se dividiu entre cinco pessoas. Os latino-americanos para um apaixonado por Gabriel Garcia Márquez, os contemporâneos para outro escritor, teimoso em observar somente o passado e não contemplar seus companhanheiros. Thrillers, policiais e qualquer outro mistério foram dedicados a uma professora, hoje de cabelos brancos, apaixonada pelo gênero. Foi travando uma batalha sobre o conceito do noir que ele observou a intensidade daquela senhora.
Selecionou a obra de Henry James e Monteiro Lobato para outro amigo escritor que não via há anos. Quando leu seu primeiro romance, antes mesmo de sair nas livrarias, disse ao amigo que sua prosa lhe parecia um James abrasileirado, com o estilo intimista de Lobato. Imaginou que lembraria da comparação e ficaria feliz em receber tais autores.
Com a mulher, deixou suas obras preferidas em diversas edições. O Shakespeare completo no original. E todos os demais livros que compraram juntos. Acrescentou em cada um dos que ganhou dela um pequeno bilhete. Uma carta suicida que será encontrada ao acaso e lida de maneira desordenada, criando um sentido próprio. Além do único romance de Dickens que não leu. A esposa concluiria esta missão.
Presentou Marina com suas preferências. Austen, Woolf, Plath, Mansfield, McCullers. Não lhe escreveu carta alguma além de um pequeno bilhete entregando as memórias do diário.
Os demais receberam narrativas específicas pela evocação da memória e cartas, que considerou suas últimas narrativas, como forma de adeus, expiando ou acusando pecados. O Sol é Para Todos, de Harper Lee. Sunset Park, de Paul Auster. Neve, de Orhan Parmuk. A Grande Arte, de Rubem Fonseca. O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Ponche de Rum, de Elmore Leonard. O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. Luz Antiga, de John Banville.
Endereçados a amigos com uma carta escrita a mão como despedida.
Pensou em Wagner e a Cavalgada das Valquírias. Poderia ligar a vitrola e morrer ao som das trombetas. Previu gritos de vizinhos e fofocas de quão macabro seria sua execução se parecesse ainda mais pomposa.
A morte não era dor. Era aceitação de sua própria finitude. Da consciência de que rumo a um futuro em queda, melhor seria ganhar uma última vez da vida..
Deixou quinhentas e sete anotações literárias naqueles papéis. Contos completos, prosas, idéias, rabiscos, poemas, traços enlouquecidos pelo vinho. Todas unificadas em uma mesma ação. Ungindo-se em cinzas, palavra por palavra de maneira muda, gritando enquanto chamas destruíam sua residencia. Como companheiras acompanharam-no em vigília e carregaram-no para o além.
Tudo que foi estava naquelas linhas. Acho justo levá-las para onde fora. Nunca soube ser enquanto vivia. Esperava renascer em outros versos, prosseguir nos diários que estavam com a esposa e Marina. Na morte, soube ser o que queria em vida.
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