Ray Charles cantava para mim nesta manhã de domingo. A escuridão permanecia em meu quarto com janelas cerradas para a vida. Levemente violentado pelo mormaço de verão.
Em seu suingue buscava um porto seguro, mesmo que temporário. Solidez que me suportasse agora. Mas a voz grave do Gênio levou-me até você. O dia tornou-se escuro, a música ainda ecoava no aparelho, sem fim. Na varanda que não existe, eu e você, sentados, bebendo algo impactante, tanto ao paladar como símbolo de uma cena. Copos baixos com cubos de gelo, dissolvendo a bebida cara, comprada na ante véspera.
Era mais provável, porém, que nos embriagássemos de refrigerante ou, em um arroubo criativo, tentássemos fazer Shirley Temples se encontrássemos uma maneira de produzir uma bebida de gengibre.
Não me importava a petulância dos detalhes. Mas sim a conjugação da cena. Seqüência de imagens que, dentro de mim, produzisse alegria e prazer, efeitos simultâneos. A brisa noturna que suavizava o ambiente, bebidas para idealizar um longo diálogo amistoso, você e eu como únicos seres existentes neste mundo, sentados no sofá de vime enquanto, do quarto, Ray Charles continuava cantando para nós.
Então, em reverencia, pediria uma dança. A luz de uma casa posterior se acenderia e você, mesmo envergonhada com possíveis espectadores, acompanhava meu ritmo. Seus olhos impressionados com minha cadência serena. Seria tão romântico, mas, em minhas tentativas, dois passos seqüenciados atropelam-me.
A balada acabaria e, enquanto as raylets vocalizavam uma abertura esquentada, tomavamos mais um gole de nossas bebidas, agora com os copos suando. Então, provavelmente, acenderíamos um cigarro. O rangido do metal com minhas iniciais e a chama que, naquela escuridão, revelava nossos olhos brilhando. A adocicada fumaça saindo de nós, empesteando o ar.
Eu que nunca gostei de cigarro, pergunto-me quantos filmes hollywoodianos assisti para acreditar que o tabaco traria mais romance a cena. Bem como amaldiçôo a desolação de Bogart, desfazendo o nó da gravata borboleta e virando doses e mais doses por causa de Ilsa. A mesma bebida que esta na mesa ao lado do sofá, também composta por madeira rústica de maneira harmônica com a varanda e a casa.
De súbito, vazio e calor retornaram. Levantei-me, coloquei outro disco do músico, mas as canções eram animadas ao extremo. Cessavam o romance embebido em idílica cena. A sonoridade mais me deslocava que me entrosava.
Imaginei a vida na década de cinqüenta. Nós enlouquecidos pela sonoridade negra que iluminava a música como nenhum outro ritmo desde sempre. Seu pai nos observando pelas janelas de casa, enquanto namorávamos no portão, atento a qualquer carinho além das mãos dadas. Me desconcerto ao perceber que a imagem está mais próxima de uma idéia americana e sinto pena de mim pelos filmes.
Pergunto-me como viveram nossos avós nesta cidade interiorana. Sinto que o Brasil é um país sem passado. Olhar para trás é contemplar, somente, a opressão.
Esqueço que minha avó teve infância, ouviu Dalva e Herivelto, tinha como filha bonecas de papelão e, com amigas, produziam lacinhos para se empetecarem. O tempo não sentido parece abstrato. Sou incapaz de vê-lo com cronologia. Todo passado é névoa.
Se conduzir essa jornada me fosse possível, estaria ao seu lado. Abraçado em seu calor como minha dádiva. Mas não posso contrariar os caminhos que Ray me leva. Cada vez mais distante desse espaço concreto. Em épocas onde somente a escuridão causava medo, a pureza não era absurdo.
No presente, tento situar meus pensamentos. Não há varanda com casa decorada. No bolso, trocados que não pagariam a bebida mais barata da casa. Os vizinhos não acenam quando passo por eles.
Nada aqui além de mim. Nada exceto eu observando abismos. Olho para o relógio ainda no pulso, faltam semanas. Mas aqui estou, paciente. Em vigília pelo seu amor.
Meus olhos vacilam enquanto Ray sussurra uma canção de namorados. Deito-me no chão sentindo as luzes do lá fora em maiores sombras aqui dentro. Te espero, enquanto não vem. De braços e chagas abertas aguardando o labirinto de seu ser.
Tudo que possuo é o amor.
Estou ouvindo Ray agora pra celebrar o bom texto e vc. bjao
ResponderExcluirÓtima composição de cena. E teu estilo tá ficando mais limpo, o que - Deus sabe! - é uma bênção.
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