Tenho esperado essa encomenda há mais de um mês. Diversas tardes passei angustiado, achando que qualquer barulho na rua fosse a campainha. Ontem, justamente quando estava no meu escritório do centro odontológico, um entregador foi em casa para ninguém.
Deixou-me um anuncio avisando da falha tentativa de entrega. Motivo no qual o despertador gritou as oito em ponto e as oito e meia eu trancava a porta principal de casa. Estaria nos Correios assim que abrisse.
Se eu fumasse, estaria na metade do segundo cigarro. Sentei no meio fio aguardando que a porta lateral abrisse, a esquerda de uma gigantesca garagem que recebia e despachava entregas, somente para funcionários.
“Bom Dia, vim retirar um pacote que ontem foi entregue em minha casa.” A moça do balcão me olha, esperando. “Tentaram entregar mas eu não estava” e retirei do bolso a notificação.
Ela era atraente mesmo na roupa azul e amarela dos Correios. Seu rosto fora agredido pelo tempo, mas ainda assim saira vencedora. Levou o papel para seu campo de visão e, acompanhando com o indicador um código de mais de treze dígitos, passou os dados para um computador.
“Está para entrega hoje, novamente. Ontem foi a primeira tentativa”. Esperou novamente.
“Seria possível retirar agora?”, e tentei apelar para meu sorriso mais convidativo. Ela retornou a olhar o papel, e num suspiro disse me que não. Entregas de produtos ainda em rota somente após as dez e meia.
Olhei para trás e, além de mim, só havia pedaços de papel picado no chão do salão. Vasculhei a mente a procura de um sorriso melhor que o anterior, acrescido da tentativa de olhar profundamente nos olhos. “Estou aguardando essa encomenda por mais de um mês, não posso mesmo pegar agora?”.
E, lentamente, eu vislumbrava meu pacote, preso embaixo de seu braço. Assim que colocou no balcão, arranhei com minha chave as proteções e retirei do envelope. Só havia um papel bolha entre eu e aquilo que considerava uma das belezas mais belas que já pus os olhos, perdão a hipérbole.
“Veja só, veja só, veja só”. O livro tocou levemente o balcão. Era novo, intocável. Suas mais de mil páginas lhe davam um peso que imaginei não ser capaz de suportar. Elevei-o até a altura dos olhos, “todas as peças de William Shakespeare”, sussurrei e, sem nenhuma vergonha, senti o aroma de papel recém impresso.
“Parece especial”, me disse. “Sim”, respondi, “um dos meus autores máximos e um dos maiores da literatura. Desculpe se exagerei”, tentando corrigir minha contemplação anterior. Ergueu-me uma das sobrancelhas ao invés de chamar-me de maluco. O computador imprimia uma ordem de entrega que ela me deu, instantes depois, para assinar. “Nome completo na linha e me mostre sua identificação, senhor”.
Quando meus olhos pousaram novamente nela, ela sorria. Minha vez de erguer a sobrancelha. “Está tudo certo e, a propósito, meu nome é Mônica”.
A manhã me atrasou em segundos para compreender seu sorriso e, quando percebi, eu já havia começado um amarelo. Essa sentença que me persegue pouco depois de meu nascimento, provavelmente, estaria comigo até o fim da vida. Ter um nome, ou parte dele, de uma canção que se tornaria famosa em todo o Brasil pela banda de rock de Renato Russo.
“Prazer, Eduardo”, disse, mantendo o sorriso e estendendo-lhe a mão, suave, alias. Esperamos, sabendo que nenhum dos dois diria mais nada.
Meia hora depois, a obra completa de Shakespeare iluminava minha mesa como nada foi capaz. Folheei as páginas como um devoto que encontra as palavras de seu deus. Romeu e Julieta, segundo ato, segunda cena, entra Romeu: He jests at scars that never felt a wound.
Só ri de uma cicatriz quem nunca foi ferido. E meus pensamentos eclodiram no sorriso de Mônica. Na posição perfeita dos dentes em contraponto as marcas desgastadas na pele. Quantas escaras aquele riso já teria colocado para fora, refleti. Ela esteve comigo em pensamento por aquele dia todo. Eu estava condenado.
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