“Que saudades, amor!”
“Também estou com saudades, mas só de te ver assim eu já melhoro um pouco. Você é linda, sabia?” Ele piscou para ela e sorriu, um sorriso aberto, mostrando todos os dentes.
A mulher vestia uma blusa com estampa em padrões coloridos, ali uma flor, aqui um pássaro, acolá um sonho lisérgico. Ela levantou o garfo e experimentou o pedaço de frango, mastigando sem pressa, sentindo o sabor acentuado da carne branca. “Então, como foi sua semana?”
O homem estava fora da mesa, com metade do corpo para dentro da geladeira, tentando escolher qual vinho abrir. Era uma escolha difícil, muito, muito meticulosa. Pegou uma das garrafas e leu o rótulo em voz alta, antes de lembrar que, de fato, desconhecia o universo dos enófilos. Enofilia, pensou e suprimiu o riso pueril. “Foi boa!” Respondeu afinal, falando um pouco mais alto para que ela pudesse escutar com clareza. “Tirando o pneu furado, é claro. Eu te contei sobre meu pneu furado, afinal?”
Ela estava ajeitando a roupa quando ele voltou. “Não, não contou. Quando foi isso?”
“Terça? Quarta? Não me lembro. Eu deveria me lembrar, certo? Acho que qualquer um se lembraria de um pneu furado, quero dizer, é um porre. Você tem de usar o macaco, depois ficar no meio da rua, ou da estrada, com os carros passando à toda do seu lado… E seu cofrinho sempre aparece”, ela deu uma risada aguda, cobrindo a boca com uma das mãos, “deve ser uma lei universal. A primeira pessoa que trocar um pneu furado no meio da rua sem mostrar o cofrinho causará a implosão do Universo.”
“É sobre isso a sua pesquisa na universidade?”
Passou um dos braços sobre o encosto da cadeira e formou uma arma com os dedos indicador e polegar, disparando um projétil fantasioso na direção da mulher. “Exatamente. E desconfio, como já disse Douglas Adams, que isso já aconteceu antes, baby.” Pegou um pedaço do pão de alho e levou para boca, mastigando sonoramente.
“E foi só isso?”
“Hum”, ele respondeu ainda com metade do pão na boca, “eu fiquei uns quarenta minutos para trocar aquela porcaria. Sabe quanto tempo fazia desde que troquei meu último pneu? Não? Pois é, nem eu! Agora eu preciso arrumar um step novo, para não ficar na mão, certo?”
Ela assistiu enquanto ele pegava o saca-rolhas de um dos cantos da mesa e brigava com a rolha do vinho. “E faz quando tempo desde que você abriu a última garrafa de vinho?” Ela se divertiu com o olhar incrédulo no rosto dele. Impagável. “Esse vinho é bom?”
“Deve ser”, a última palavra saiu quase como um gemido, junto com a rolha. “Eu demorei para escolher essa garrafa que estava na geladeira. Espero que tenha acertado o ‘menos pior’ dentre meus vinhos.”
Ela gargalhou. “Seu besta. Menos pior não existe.”
Experimentou o vinho tinto e fez uma careta. “Realmente não existe, acho que todos esses vinhos são péssimos. Preciso de ajuda para comprar vinhos.”
“Traga a garrafa mais para cá”, ela pediu, “não consigo ver tão bem nesse escuro todo. Você não quer acender a luz?”
O homem largou a garrafa onde estava e apertou o interruptor. Alguns segundos e nada aconteceu. Acionou novamente e forçou com o dedão, a luz piscou algumas vezes, estabelecendo-se com um intenso clarão. Cerrou os olhos por uns instante e assoprou as velas, sorrindo novamente enquanto as chamas queimavam, apesar do sopro da mulher. Ele se aproximou e apagou as duas chamas com as pontas dos dedos.
“Sempre quis fazer isso”, ela disse com a cabeça apoiada nas duas palmas, “é tão macho, apagar velas com as pontas dos dedos.”
“Eu sou inteiro macho, querida”, respondeu com uma piscadela. “Como está o seu frango?”
“Ótimo. O seu peixe?”
“Poderia estar melhor, mas não vou reclamar.”
Comeram algumas garfadas enquanto se olhavam, olhares apaixonados, sinceros e ternos. No fundo, Eric Clapton cantava sua paixão por Layla, a moça que o deixara de joelhos, implorando, querida por favor, Layla.
“Amanhã eu tenho de ir até a universidade”, ela mudou a expressão de repente e sua testa mostrava algumas rugas por antecipação.
Quase engasgou com o peixe. Socou o próprio tórax duas vezes e tossiu, engoliu o que restava de vinha no copo - um copo de requeijão, pintado com uma figura que tentava parecer o Bob Esponja. Dois fios de vinho desciam pelos cantos da boca e manchavam o colarinho branco. Pareciam duas poças de sangue. “No sábado? Só você?”, tentou suprimir o tom ácido na voz, mas não foi possível: o vinho era ácido e ele sentia o álcool de baixa qualidade acionando a fúria repentina.
Hesitou por quase um minuto, jogando um pedaço de frango de um lado para o outro, raspando o garfo no prato. “Não… o Edward tem que ir também-”
“Puta merda, viu?” Ela não conseguiu terminar a frase. O rosto do homem parecia prestes a explodir.
“Amor, eu não posso fazer nada! Cada um tem um papel específico dentro do laboratório e as culturas já estão…”
Ele reclamou novamente, resmungando alguma coisa sobre as culturas que ele poderia cultivar na própria cavidade anal.
“… ficarem mais tempo, vamos perder o trabalho de duas semanas e minha orientadora não vai gostar”, continuou, ignorando o comportamento infantil daquela mesa. “O fato é que tenho de ir e fazer meu trabalho, o resto é por conta da sua imaginação.”
“Minha imaginação?” Bateu os talheres na mesa e tirou o cabelo do rosto. “Foi minha imaginação ele passando a mão na sua perna? É isso? Quando saímos, foi minha imaginação também, como ele ficava te olhando e suas risadas para tudo que o imbecil falava? ELE NEM ERA ENGRAÇADO!”
“Calma, amor, não precisa gritar! Olha os vizinhos…”
“Os vizinhos que se fodam.” Cruzou os braços e soltou o corpo na cadeira. “Quer saber, a próxima vez que eu pegar um vôo para te visitar, vou socar esse palhaço. E você está de castigo.” Ele moveu o cursor do mouse e aumentou a música. Agora, era o Metallica que tocava algo sobre guerras. Virou o computador para a parede e a deixou olhando o canto da cozinha através da pequena câmera no topo da tela.
Mesmo em outro continente, ela podia sentir o cheiro daquela casa, o barulho constante de música ou do video-game na televisão da sala; podia se lembrar das vezes que ferveu água para fazer chá, segurando um livro aberto nas mãos e deixando o sol banhar seu corpo. Uma pontada de saudades atravessou seu coração e ela sangrou por dentro. Estava cansada das brigas, da saudade e do ciúmes. Abaixou a tampa do notebooke e soltou o ar pesado que invadira o seu peito. Eram duas da manhã e jantar com ele nem sempre era fácil, principalmente quando o skype resolvia travar ou nos dias em que ele ficava bravo. Deixou o prato na pia, apagou a luz e escovou os dentes. Entrou no quarto, devagar, tirou toda a roupa e deitou, sentindo o calor aconchegante de Denise. O cheiro do shampoo, misto de flores e da pele morena de Denise, trazia uma enorme paz. Ela inalou profundamente.
“Como foi?”, a outra mulher perguntou, o inglês carregada de sono.
“Ainda com ciúmes do Ed.” Abraçou a mulher e apertou os seios fartos contra os dela. Trocaram um rápido beijo.
“Mas ele nem é engraçado…”
“É… eu sei.”
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