Na verdade eu era até um estraga-prazeres. Quando diziam que uma casa era mal assombrada ou cheia de almas penadas, eu entrava lá, abria as janelas e dizia: "Olha aí, gente, não tem alma penada nenhuma aqui não!"... Caminhos escuros onde se escondiam os sacis e outras coisas também me fascinavam. Fiquei três noites em Joanópolis para ver o Lobisomem e a Mula-Sem-Cabeça, que a mulher jura que o filho dela viu, mas eu sou um azarado mesmo. Nos dias que fui nunca apareceram. Já tentei até 13 de agosto de ano bissesto, em plena sexta-feira. Nada.
Eu nasci incrédulo. Essa é a única explicação. Ou minha mãe era tão incapaz de me convencer, que ela dizia mas eu não acreditava. Mas é certo que na minha família a morte nunca foi nem amiga nem inimiga. Choramos a morte dos que se vão com naturalidade, mas não queremos ir junto, como costumam fingir alguns à beira da sepultura. E depois que se vão os esquecemos (eu pelo menos esqueço) e não costumamos fazer visitas aos ossos do defunto que está sete palmos debaixo da terra.
Não faz sentido.
Em cidades menores, como Araraquara na minha infância, os velórios eram feitos na casa do defunto. A funerária punha uma cortininha roxa no portal da casa indicando que ali havia luto. As portas eram abertas, os móveis retirados e a visitação era sempre pública. Afinal todos se conheciam. E a entrada era franca, o que significava que se podia conhecer por dentro a casa de todos aqueles que morriam. Confesso que não resistia. Desde que que me conheço por gente, sete ou oito anos, que perambulava pelas ruas da cidade, não perdi um velório.
Só havia duas funerárias. Ou Micelli ou Almeida. Mas duas funerárias já dava concorrência. Eu preferia os funerais dos Micelli por ter cafezinho e mais alguns agrados. Às vezes fazíamos amizade no velório com outras crianças e ficávamos brincando de pega-pega, até por debaixo do caixão já passei correndo. E eu sempre tive muito apego ao uso das palavras. Então ficava observando como se comportavam as viúvas, e as frases prontas que se repetiam em todos os velórios. A mais comum na minha cidade era que o defundo nunca tinha feito mal "nem para uma mosca". Outra comum era o "tanta gente ruim nesse mundo, e bem ele vai morrer".
O fato foi que eu me diverti demais com os velórios da cidade, aproveitei velórios de ricos que compravam salgadinhos e guaranás e, enquanto uma turma chorava lá, a outra refestelafa de cá, entre risos, piadas e coisas comuns a todos os velórios. Também, chorar 24 horas sem parar, nem a mãe da criança.
Dada a hora marcada, um carrinho era encostado na porta da casa, o caixão era fechado aos berros desesperados dos órfãos, coisa compreensível, e íam empurrando o carrinho até o cemitério. Todo mundo ajudava um pouquinho para colaborar no esforço. Depois passaram a levar na kombi, bem devagarinho e o povo ia atrás. Mas a cidade foi crescendo e os trajetos da casa do finado até o cemitério começaram a ficar longe demais. Não dava para acompanhar a pé. Aí iam de carro, alguns não iam mais e a tradição foi-se acabando.
Para acabar com a festa de uma vez, um prefeito lá que nem quero lembrar qual foi, construiu o Velório Municipal e proibiu fazer velório nas casas. Aí acabou a graça. Velórios municipais são como conjuntos habitacionais: quem viu um viu todos. Já fazem num canto do cemitério e nem tem a procissão. Cada um corre para pegar um ângulo bom de vista. Acabou-se a cerimônia. Virou uma zona. Foi um tempo muito bom. Aprendi demais sobre como um defunto vira santo. Basta não matar "nem uma mosca".
Paralelamente a esse meu fascínio por velórios, eu também adorava andar em cemitérios e ver, pelos nomes mais conhecidos, os mais ricos, quem fazia o maior jazigo. A vaidade é uma coisa tão podre que se manifesta até na compra do caixão mais caro e na construção de jazigos com mármores importados e outras coisas que arquitetos famosos projetam para os que gostam disso. Credo.
Mas, fora os famosos, há os interessantes. Uma observação atenta te leva aos que estão enterrados a mais tempo. Quantos anos viveu. É só fazer as contas do dia do nascimento e da morte. Eu era bom de fazer contas de cabeça. E aos túmulos "classe média" eu dava só uma espiadela. Não tinham muita atração. Era só um granito barato, básico, e uma plaquinha informativa. Eu gostava mesmo era das pontas. Dos jazigos dos poderosos e dos podres de pobres.
Houve uma fase em que o granito e o mármore ficaram caríssimos e então surgiu a moda de fazerem túmulos azulejados. Era uma breguisse, mas ficava mais barato. Já imaginaram uma cruz azulejada em cima do túmulo? Um horror. Já até a década de 50, 60, ainda se conseguia colocar uma escultura em mármore de alguns anjos. Depois encareceu demais e hoje, quem tem, tem, quem não tem, morresse antes.
Por essas semanas, com o sepultamento de dona Ruth Cardoso no cemitério da Consolação, me lembrei que tive a oportunidade de conhecê-lo mas, que azar o meu, não sabia de tantos famosos lá enterrados. Presidentes, Monteiro Lobato, os Matarazzo e tantos outros. Perambulei por lá, gostei demais, mas não reconheci ninguém famoso. Fiquei sabendo das atrações através de um "guia turístico" do cemitério que foi entrevistado no Programa do Jô. A vida me empurra cada vez mais para longe de São Paulo, mas ainda vou visitar de novo o Cemitério da Consolação, dessa vez com o guia, pois quero contemplar o último lar dos que não voltam mais.
Enfim a moda virou e acharam que a morte nivelava as pessoas, de forma que surgiram os cemitérios parques, gramados, sem túmulos. Anda-se pelo gramado em busca das plaquinhas que ficam no chão. O primeiro, salvo engano, foi o Cemitério do Morumbi, onde estão os restos de
Ayrton Senna e da minha avó e família.
De fato nivela as pessoas mesmo, mas por cima. Não tem túmulos mas um pedacinho de terra custa uma fortuna. Como as pessoas andam pelos jardins aleatoriamente, não se cria trilhas. Menos no caso de Senna.
Ali é que nem área de goleiro. Não cresce grama nem a pau. Todo mundo vai lá, lê a plaquinha "Ayrton Senna da Silva", lamentam e se vão. Todos num vai e vem em linha reta. Não tem jeito. Só calçando mesmo. Esses cemitérios não têm charme. São monótonos demais.
Cemitério é cultura. Cemitério conta a história da cidade através dos que se foram e das suas condições financeiras à época da morte. Mostra costumes de épocas, como se colocar a foto do defunto no túmulo. Houve a era dos versos, dos anjos, das estátuas em bronze. Está tudo lá, datado. É só observar. E, como tudo na vida, tem que garimpar. Quem anda pelos meios das quadras acaba encontrando algumas preciosidades.
Finados é o carnaval dos cemitérios. Aconselho não ir nesses dias. A hipocrisia é imensa. Escolha uma segunda-feira normal, lá pelas 10 da manhã, e vá observando, lendo, aprendendo... Lá não há almas penadas, nem fantasmas ou assombrações.
---------------
José Caparica Neto, autor do texto acima, foi escritor, cronista, jornalista e publicitário. Morreu no dia 22 de Outubro de 2010, aos 53 anos.
Muito bom!! é a cara do Zé Caparica, parece que ele esta contando esse "caso" pra gente... saudades....
ResponderExcluirQue saudades!
ResponderExcluir