terça-feira, 28 de julho de 2009

Meu Inferno

“Procedimento normal”, sorriso opaco e cansado. “Acontece muito”. Devia estar há muito tempo lá, final de plantão. Quis perguntar, mas hesitei. Quando o médico chegou, mais simpático que o habitual, perguntou-me o óbvio. “Se cortou?”, quis responder que foi fazendo a barba.

Os vizinhos ouviram minha fúria. A cadeira contra o espelho, o som das lascas no chão, a faixa ensangüentada na mão enquanto descia as escadas. Não perguntaram nada. Podiam imaginar.

Minha imagem me incomodava pelo que sentia. Fiz o espelho quebrar – o único em casa – para não me ver mais. Primeiro a cadeira, as mãos depois. Na volta, com a mão bem enfaixada, sangue seco e estilhaços no carpete. Retrato do que sou.

Arranquei a roupa ainda suja, abri as janelas, morrer de fome ou de frio, quem viesse primeiro. Fui até o quarto, as luzes de fora davam-me o necessário para ver. Abri o armário, retirei roupas. Na mesa de cabeceira mais uma pílula. Uns fumariam cigarros, outros beberiam whiskey. Eu, violentei o espelho.

Na cozinha achei a tesoura que procurava. Cortei os cabelos, carpete de vidro, sangue, fibras e pelos. Não quero ser o que sou. Mas da carapaça não sai nenhuma máscara, não escorre nenhuma maquiagem. Sou o que fiz, fiz o que sou. Lobo de mim.

O frio adentra a espinha. Eu me voltaria a Deus se ele ajudasse. Eu lavaria as mãos se a água pudesse limpar. Tudo parece o mesmo caldo.

Quase nu, vou à janela. Observo um homem sombrio em atitude sombria. Apoio as mãos no parapeito, lembro-me do corte que havia esquecido. Aperto-as para sentir doe-las. A vida pulsa em meus ouvidos, estrelas fulguram em meus olhos. “Até onde pode agüentar, homem?”, me pergunto. E na escuridão vejo a faixa enrubescer.

Respiro fundo para não proclamar minha dor. Caminho para a cama. Uma pílula já foi passear, duas acompanham seu caminho.

Durmo.

Monstro. Homem. Deus. Nada. Ninguém.

2 comentários:

  1. Qualquer semelhança é mera coincidência???
    Cara meu, enxerguei o Nicolau com seu blazer e barba por fazer nesse texto.. . caramba!
    Outra coisa, whiskey é Jack, os demais são apenas Whisk. ;)

    Te conheço mais a cada texto seu! ;)
    Como sempre, ótimo!

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