Seu nome era Thiago Augusto Corrêa. E ele desapareceu.
Fim.
sexta-feira, 24 de abril de 2015
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
O Homem que Chegava Cedo Demais
Alfredo Holmes esteve adiantado toda sua vida. Nasceu aos sete meses de gestação, com pouco mais de trinta centímetros e um peso ínfimo, como se estivesse com pressa de conhecer o mundo, para respirar primeiro o ar que muitos inalariam mais tarde. Aos sete meses já andava como se fosse um potro; com oito meses, falava com perfeita dicção. A infância de Alfredo também foi apressada. Nas festas de seus colegas, costumava chegar quando o aniversariante ainda estava no banho e era forçado a ficar sentado no sofá, assistindo os programas toscos que passavam de domingo, respondendo perguntas feitas pela metade por tias acima do peso. Era o primeiro a chegar na escola e todos os dias ficava sentado no escuro, esperando alguém mais chegar e acender as luzes da sala de aula. O pequeno Alfredo permanecia sentado, com os dedos da mão entrelaçados e um rosto impassível. Suas provas estavam sempre no fundo da pilha, os amigos contavam com ele para comprar lanches, pois estava no começo da fila e sempre conseguia assistir os filmes e shows que pretendia. Nunca perdeu a hora. Esteve em todos os vôos e viagens de ônibus ou trem; aos doze anos tinha de fazer a barba: um caso de puberdade precoce. Alfredo, aliás, foi precoce em tudo. Nietzsche e Kafka foram seus presentes de décimo terceiro aniversário e ele os leu com prazer, terminando os grossos volumes antes do que esperava. Entrou na faculdade antes de todos e percebeu a importância da filosofia cedo na vida. Concluiu o curso no terceiro ano, não por ser de uma inteligência sagaz - apesar de chegar à conclusão antes de todos - mas simplesmente por ser… adiantado. Conseguiu a vaga de professor apenas por ter sido o único a chegar no horário da entrevista, apesar da chuva impossível que despencava naquele dia, passando por enchentes e bloqueios sem perceber que o fazia.
Por toda a existência, sentia algo incômodo na cabeça, algo mais profundo do que conseguia mergulhar e enxergar com clareza. Era uma sensação deslocada de qualquer categoria e mesmo devorando Platão, Kierkegaard e Hegel, não podia entender um simples incômodo, para sua irritação.
Todos os homens seguem um de roteiro para suas vidas. Alguns tomam desvios ou têm finais abruptos, mas é quase certo que as fases da vida seguirão com natural ordem e sucessão. Infância, adolescência e a chata fase adulta culminam na velhice e o corpo enfraquece, a mente entra em uma névoa iminente e o sistema desiste do jogo e entrega os pontos. Para ele, os períodos foram todos misturados e empilhados e com isso, a infelicidade também chegou antes. Com vinte e nove anos, Alfredo enfrentava o terceiro divórcio - todos os três iniciados por ele, que chegava ao limite antes da parceira - e contava com quatro filhos. Sabia que era difícil conviver com ele. Tinha o péssimo costume de chegar ao fim das conversas com demasiada pressa, não podia comentar sobre filmes ou livros pois todos os outros ainda não haviam visto ou lido e estragava os finais com certa regularidade. Chegava a ser inconveniente em churrascos e festas por chegar muito cedo, como na infância - uma vez tomou o café da manhã na casa de seu primo, cuja festa começava às quatro da tarde. Os convites chegavam para ele com o horário atraso em quatro horas. Alfredo também era um péssimo amante, por motivos que não é preciso expor. Depois dos trinta, os ossos começaram a enfraquecer com rapidez e ele operou os olhos com trinta e cinco, deixando para trás duas cataratas. Esquecia de reuniões, deixava os livros que estava lendo em lugares dos quais não tinha memória, sentia dores nas costas e percebia sua teimosia aumentando diariamente.
No dia trinta de dezembro de 2013 ele se deitou, a velha sensação incógnita causando dor de cabeça, carrancudo e triste: um homem de trinta e nove anos, com cabelos brancos e ralos, rugas por todo o rosto e dentadura guardada em Listerine na cabeceira da cama. Amaldiçoou a vida adiantada que tinha, xingou os cabelos e unhas que cresciam antes do que deviam, a libido que se esvaiu cedo demais, o intestino que ficara precocemente sensível e os pulmões que há anos perderam parte da capacidade. Dormiu antes de conseguir enumerar os motivos que deixavam sua vida triste.
Acordou antes do sol nascer e do despertador disparar o irritante som que parecia anunciar a chegada de todos os infernos. Algo estava errado e ele procurou entender exatamente o que havia acontecido, mas falhou antes mesmo de começar. Levantou-se, lavou o rosto e escovou as gengivas, encaixando as dentaduras pela última vez antes de descer as escadas e preparar duas xícaras de café, que tomou acompanhados por panquecas um pouco cruas e manteiga derretida. Subiu as escadas novamente e trocou as roupas: hora de esticar as canelas e esperar o ano morrer. Quem sabe sua vez chegaria antes e 2014 significasse o fim de sua miséria. Não custava sonhar. Quando abriu a porta, sentiu o coração ameaçar - não pela primeira vez - parar de bater. O mundo estava branco. Olhou para as mãos e enxergou com perfeita nitidez a pele macia e livre de rugas ou as manchas escuras que começaram a aparecer no inverno passado. “Mas que porra…”, terminou a pergunta antes de chegar ao ponto de interrogação. Jovens, as mãos eram suas, mas estavam na data errada, substituindo os membros velhos de pele flácida e solta dos músculos. Podia ver a casa até a porta de entrada e depois via apenas branco. Um nevoeiro? Não, eu ainda poderia enxergar pela névoa. Colocou os dedos rejuvenescidos na boca e puxou as dentaduras, descobrindo dentes no lugar das placas removíveis. Puxou um fio de cabelo e admirou o castanho escuro que os fios possuíam até o vigésimo quarto aniversário. Há algo de errado além do meu corpo jovem e do mundo ter desaparecido… mas o quê?
Apoiou as mãos na parede da casa e tentou pisar na superfície branca, sem ter certeza de que poderia ficar sobre ela ou se despencaria eternamente em um infinito leitoso. Seus pés tocaram onde deveria haver chão e ele conseguiu ficar sobre a superfície branca. “Olá?”, ele gritou, quebrando o terrível silêncio que caía sobre o mundo. Não, ele percebeu, era muito mais do que silêncio. Alfredo experimente a completa falta de sons. Seu grito saíra abafado, todo estranho e fanho, como se não existisse lugar para barulhos aqui. Tentou juntar todo o conhecimento dos estudos filosóficos com o cérebro novamente jovem e se impressionou com o raciocínio afiado, mas falhou em encontrar explicações.
Alfredo fez a única coisa que podia e começou a caminhar, deixando a casa para trás até ela se tornar num ponto escuro no horizonte. Conseguiria voltar? Realmente importa? Horas se passaram e ele caminhava, mantendo a direção o melhor que podia, tirando prazer do exercício prolongado e das pernas novamente fortes. Sem dores nos joelhos, sem músculos fortes. O que estava acontecendo?
Foi quando encontrou os outros.
Primeiro, viu a movimentação longe, se destacando do oceano branco que tinha diante de si. Correu a longa distância, gritando e gesticulando para algumas pessoas que cortavam madeira. Um deles parou e sorriu de volta, soltando o serrote e pegando uma prancheta. “Alfredo Holmes”, perguntou antes dele parar de correr.
“Como… como você sabe meu nome?”
“Estávamos esperando por você. Na verdade, já está um pouco atrasado.” O homem estudou o relógio que tinha no pulso. “Vista isso e vamos ao trabalho, meu amigo, não temos muito tempo.”
Alfredo pegou o macacão que o homem esticou para ele e passou os dedos sobre o nome bordado na altura do coração. A. Holmes. Eles realmente esperavam por ele. Olhou ao redor e viu mais trabalhadores do que conseguia contar. Homens e mulheres pregavam pregos em tábuas, plantavam árvores, posicionavam concreto, pedras e asfaltavam um rua pré marcada com o que parecia ser giz cinza. Três grupos se penduravam em enormes escadas e pintavam o céu com um azul claro. Alfredo olhou para uma loira que pintava uma nuvem um pouco mais carregada e ela olhou de volta, acenando a mão e sorrindo. Ele a cumprimentou de volta, hesitante.
“Anda com isso”, disse o homem de antes. “Você está nos atrasando, Holmes.”
“Onde… onde estou?” Passou a língua nos lábios secos.
“Onde é uma terminologia erra, homem. Quando, eis o que você quer saber. Bem vindo ao primeiro de janeiro de 2014.”
“Impossível. Hoje é dia 31.”
“Para eles sim; para nós, dia primeiro. Dois mil e catorze, Era Comum. Para os ocidentais, pelo menos. Com os chineses, a história é outra. Mas o amanhã é o mesmo, não importa se você é rico, pobre, católico, jedi, judeu, homem, mulher ou tudo que há no meio. E mais, o amanhã é nosso dever. Agora venha comigo, vou te mostrar o que você deve fazer. Você agora é um Construtor, Holmes, sua tarefa é nos ajudar a construir o futuro.” O homem entregou uma pá para Alfredo e apontou para um canteiro. “Hoje você vai plantar rosas.”
Tentava tirar algum sentido daquilo, mas no íntimo já entendia onde… quando estava e sentia a felicidade explodir em seu peito. “Eu-eu vou construir o futuro?”
“Sim, parte dele. Tudo que fizermos aqui será usado amanhã e descartado imediatamente depois do uso. Você vai pavimentar o amanhã, Holmes. Quase literalmente, porque nosso pavimentador é o Jorge”, ele apontou para um rapaz com não mais de dezenove anos, sentado num enorme compactador de solo, trabalhando nas ruas da cidade. “Plante as rosas do dia primeiro, Holmes. Depois você pode encher os oceanos do dia”, ele chegou o cronograma, “quatro de fevereiro. E chegue mais cedo da próxima vez.” O homem se virou e caminhou para longe, gritando com um grupo de pessoas que tentava acertar a direção do vento e outro, que ajustava o sol com um longo gancho de metal.
Alfredo Holmes percebeu naquele momento, um momento no futuro, para a maioria das pessoas, que a sensação estranha havia desaparecido. Ele não mais se sentia deslocado.
Começou a assobiar uma música e enfiou a pá no solo recém criado, preparado para plantar todas as rosas do mundo.
Pela primeira vez, Alfredo se sentia na hora certa.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Vermelho
Nós fizemos sexo ontem à noite. 2013 e eu. Ela colocou os lábios no meu pau manchando-o de batom barato que comprou na 25 de Março. A recessão é foda, disse. E depois não lembrei mais nada.
Desde Outubro tinha ganas de matá-la. Mas desisti quando percebi que, ao contrário de 2011, não a encontraria tão facilmente. Então, ela veio até a mim. Vestindo vermelho, sedutora, sem um pingo de culpa, me chamando pelo nome.
Faltando um mês para morrer, não estava na mesma forma quando a vi em fevereiro, quando apareceu em meu aniversário de trinta e dois anos com a beleza mais perfeita que vi: cabelos ondulados, uma camiseta que ressaltava o tamanho de seus seios e uma saia – depois de muitos meses, descobri chamar-se plissada e que reproduz o estilo das saias das colegiais americanas, fantasia de muitos homens adultos – que exibiam as pernas como poesia.
Me encontrei com os últimos cinco anos, mas ainda não sabia como se arquitetava o nascimento de cada um. Descobri que eram capazes de escolher como nascem – masculinos, femininos ou híbridos; determinar em que fase da vida, em comparação ao desenvolvimento humano, surgiriam – recém nascidos, jovens, adultos; e o período de envelhecimento entre janeiro a dezembro. Motivo que me deixou espantando ao rever 2011, nascido como uma criança de cinco anos, velho e trocando as palavras perto do nascer do ano seguinte.
A plena juventude foi a escolha egocêntrica de 2013. Em dezembro, a beleza escorria pelos poros: os seios falharam na gravidade; na cintura evidenciava-se um pequeno acúmulo, que não a deixava menos irresistível; sofreram as pernas. Não produziam a lembrança de si mesma em fevereiro, caminho ideal para traçar os lábios.
Quando ela ficou nua para mim, as mãos mantiveram-se retesadas frente ao corpo. Ela sabia que o tempo lhe fora agressivo. A vida curta de trezentos e sessenta dias maltratou-a violentamente. Chamou-se de bruxa.
Estive apaixonado por 2013 até meados de junho. Quando sofri um viés e, se sobrevivi, foi graças a minha própria vontade e esforço. Em setembro, imaginei matá-la, como fiz com 2009, vinte e cinco dias antes do término do ano, afogando-o em um prato de sopa. Tentei procurá-la em outubro, mas não sabia como ela estaria na ocasião e nem mesmo como encontrar um dos anos mais fugidios que vivi.
Ao contemplá-la nua, antes do sexo, antes do batom barato em meu corpo, perdoei-a. Perdoei de corpo e alma. Por causa daqueles olhos amedrontados de vida; por causa daqueles olhos inseguros, necessitando de carinho, perdoei.
Na nudez, contemplei seus medos: a dor de morrer sozinha como todos; a ciência de se tornar uma lembrança sem que ninguém recordasse de fato. Um desencontro que demonstrava o quanto ela estava perdida, como eu.
Fizemos sexo como libertação. Horas depois, deitada em meu ombro, com minhas mãos acariciando os cabelos lisos e descoloridos, sussurrei baixinho te perdoo em seus ouvidos enquanto ela dormia profundamente. Dormia um sono profundo de que nunca conheceu acalanto. Eu perdera a razão, perdera os motivos, a raiva de sufocá-la com minhas mãos.
Na manhã seguinte fiz café, trouxe pão e um bolo. Ainda nua, apareceu na cozinha e sentou ao meu lado. A ponta disforme do seio tocou em meu braço e quase achei graça. A claridade do dia arranhava ainda mais sua imagem. E 2013 saboreou seu café como uma criança, degustando o pão e passando excessivamente manteiga em mais uma fatia.
Nos despedimos logo após o café. Ela, onipresente, agradeceu-me. Reconhecendo implicitamente que foi ao meu encontro para assistir seu fim antecipado. Para não ver si mesma dando os últimos suspiros nos fogos de Copacabana. Cuspindo sangue enquanto outro ano, que ainda não sabia se homem, mulher, híbrido, novo, velho, nasceria.
Nossos olhos se cruzaram pela última vez. As mãos ainda dadas. Tentei um beijo que ela desarmou com um passo para trás. Ela não mais me queria porque eu não pude matá-la.
Tenha um bom fim de ano, me disse, amarga. E seguiu caminhando rumo ao nada enquanto meus olhos a observaram até a imagem do vestido vermelho desaparecer de minha visão.
Você também, sussurrei a ninguém.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Via Lacta
“"Ora (direis) ouvir estrelas!”
Olavo Bilac, “Via Láctea”
Ontem perdi o senso após o jantar. Colocávamos a estrela na árvore de natal para nos guiar o horizonte. Angulosa, brilhante, quase o menino Jesus reencarnado quando a luz acabou e a estrela não quis brilhar.
Peguei o sem fio na mão. Não funcionava sem eletricidade. Procuramos o celular, no escuro. “Tem como ligar para ele?”, não tinha. Demorados dez minutos para tateá-lo.
Ligamos para a central de energia elétrica. “Em duas horas estará estabelecida”. Mas como? Perguntei. “Duas horas, senhora”. Senhora. Explodiu a memória juvenil da voz fina. Voz de viado. Voz de bicha desmunhecando. Por que malditas duas horas? “O senhor não precisa ser hostil. É um tempo limite”.
Então, saí de casa. O bairro todo na escuridão e eu caminhando, as estrelinhas zombando de mim lá em cima. Olhei no relógio, eram quase dez. Olhei para a frente, as coxas doendo em razão do caminhar rápido, eu não chegaria a tempo.
As luzes dos carros deixavam sombras de meu corpo no chão. Sentia o vento beijando-o com a velocidade. Volta e meia alguém morre, passa no Datena, mas tanto faz. Mais vale uma alma rasgada no sangue do pneu do que uma verba não desviada para pavimentar o acostamento. Estamos acostumados.
Estava suando, reclamando por todos os poros. As luzes acabaram, demorariam duas horas. Perderia o jogo, a bebida estaria sabotada e a casa tão quente como se envolvida em um cobertor felpudo.
Cinco minutos. Vamos, gordinho, ande. Não adianta correr. Gordo não corre, saibam disso. Ande um pouco mais rápido, perca o ônibus, a hora, a estação, mas não se esforce e não obrigue o mundo a ver o desastre das banhas subindo e descendo, trombando em si mesmas e escurecendo de suor as camisas mal-lavadas.
Aos três minutos, avistei o posto visível na escuridão. Cheguei à lojinha arfando, achando que não passaria deste Natal. A moça com cara de viciada em metanfetamina deve ter me dado um olhar de desdém, não vi, mas conhecia o olhar de outras vezes. Ouvi apenas um “estamos com o sistema fora do ar”
Eu queria lhe levantar o dedo e dizer: “escuta aqui, sua vadia”, mas não o fiz. Na escuridão, só havia vultos. Então, eu aproximei do balcão e lhe perguntei novamente por quê, tentando ouvir pacientemente. Enquanto fingia ouvir a lorota que culpava a falta de luz, retirei o dinheiro de meu bolso e, lentamente, coloquei o produto no bolso com o mesmo cuidado.
Agradeci e sai.
Caminhei um quarteirão sem olhar para trás. Eu dispararia se pudesse correr. Mas caminhei lentamente para casa.
Toquei meu bolso direito, sentindo-o, quase chamando meu nome. Deslizei até o bolso e retirei-o com cuidado. O papel rasgou e quase dei uma dentada no outro, de alumínio, dentro dele. Então, mordi. Uma mordida glutona, enchendo-me a boca com aquele sabor adocicado, suave, a hóstia de minha salvação.
Estava saindo da linha, mas era um pouco tarde para chorar. Pensei no doutor me dizendo para evitar os doces. Que a dieta era algo sério. Mas eu já tinha perdido três quilos que engordei nos últimos meses por conta do stress, da lasanha congelada, dos problemas familiares, do desgraçado do oficial de justiça querendo embargar minha casa, me dei a esse luxo.
E, ali, no fim de minha via Lacta, comi o chocolate com a paixão dos amantes. Lambendo a embalagem antes de descartá-la na avenida. Feliz como um César ao comandar seu exército. A alegria em centímentros de gordura, que se acomodaria feliz na parte cententrional de minha pança que começava a diminuir.
Então, olhei as estrelas. Aqueles pontinhos brilhantes lá de longe falando comigo em picos de açúcar e bombons de chocolate. Estradas pavimentadas por mousses de maracujá e montanhas de chantilly e eu me dei conta de como gostaria de estar dentro do conto de João e Maria, sonhando com a casa da bruxa. Nem sei como cheguei em casa.
As luzes voltaram quando estava na porta. O vizinho de cima gritou “Vai, Flamengo” ainda que o time não jogasse naquela noite. As cervejas estavam chocas. Ela estava deitada na frente do ventilador.
- Onde foi? – me perguntou.
- Ao paraíso, mulher, ao paraíso.
E ela me olhou com interrogação enquanto eu ainda lambia os beiços.
domingo, 1 de dezembro de 2013
Jacques
Por Ana Paula Henrique - http://anahenrique.wordpress.com/
Jacques expulsava o oxigênio de seu corpo e, lentamente, deitava no chão da piscina: a água afastava o
vazio de sua realidade, e, mesmo que por apenas alguns segundos, ele se sentia
um ser humano novamente. Não o garoto, cuja carreira em ascensão provocara um
mudança radical em sua relação com o mundo e com as pessoas que até então
haviam sido seu suporte financeiro e emocional, sua família e sua namorada. Não
o modelo que enfiava dois dedos goela abaixo, expulsando toda comida de seu
estômago e vendo-a desaparecer na privada em uma espiral amarelada e mal-cheirosa.
Não a criatura insensível que chamara Elodie, a única mulher que
verdadeiramente se preocupava com ele, de gorda ridícula, escorraçando-a como
um cachorro vira-latas. Não o monstro que provocara o acidente que a fizera
abortar.
Na água ele era apenas Jacques.
Jacques lutando contra a vontade esmagadora de respirar e se afogar
no vazio.
Jacques residente do tradicional Arrondissement
de Passy.
Jacques. Ex-modelo.
Abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a falta
de oxigênio. Do fundo da piscina, viu então o contorno do telhado da casa,
vacilante e impreciso como uma pintura impressionista. Tentou ignorar a agonia
em seu peito, mas, não obtendo sucesso – seu corpo precisava desesperadamente
de ar –, começou a emergir. Quando
chegou à superfície e pode respirar, sentiu como se algum órgão dentro de si
houvesse implodido. Sua respiração, que rompeu dolorosa e ofegante, lembrava o
impacto dos cascos de cavalos em uma corrida; cada pedacinho de seu pulmão
brigava pelo ar que lhe era devido, assim como cada encontro firme e furioso
entres os cascos e o chão provocava rítmicos estrondos que só cessariam quando
a corrida acabasse.
De volta em seu quarto, sentou-se na cama king size, quebrada há mais de três meses, e fixou seu olhar na
mesma porta onde, há cerca de dois anos, as batidas se repetiam insistentes.
Lembranças passeavam por sua mente, afiadas e cortantes: a briga, os insultos,
a raiva.
___________
Tum. Tum. Tum.
_ “Jacques! Ces’t moi. Ouvrez la porte!
_ “Jacques!”
Batidas mais forte agora.
_ “JACQUES! Abre a porta, s’il vous plait, precisamos
conversar!
Jacques, semi-acordado,
senta-se na cama com dificuldade. Sentindo um misto de frustração e raiva que
cresce a cada batida, lembra-se do jantar no qual ela anunciou o término do
relacionamento como se estivesse anunciando a previsão do tempo, enumerando
suas atitudes ‘imaturas’ e culpando-o pelo afastamento dos dois. A revolta, até
então reprimida, começa a se espalhar
pelo seu corpo como um câncer, obstruindo sua visão. Porra, ela não terminou
tudo? Não jogou todas as coisas numa mala e saiu batendo a porta da casa que
ELE comprou, com o dinheiro da profissão que ela desprezava tanto?
Do corredor, a voz de Elodie soava cada vez mais alta:
_ JACQUES, OUVREZ LA PORTE, PUTAIN DE MERDE!
_ “C’est qui?” Perguntou só pra deixá-la mais
irritada.
_ “Putain! Você sabe muito bem quem é. Abre essa porta
de uma vez!”
Ele abriu e a encarou com o
desprezo que julgou adequado. A beleza angelical de Elodie, no entanto, atingiu-o como um golpe, e, por um momento,
Jacques se esqueceu de todo o resto: ela realmente engordara nas últimas
semanas, mas os quilos ganhos só faziam ressaltar a harmonia de seus traços, a
delicadeza de seu semblante. Algo novo estava operando mudanças físicas em sua
ex-amante. Algo ou alguém? Será que ela já estava saindo com outro cara? Pelo
que ele conhecia de Elodie isso não era provável, mas a mera possibilidade foi
suficiente para trazer toda sua irritação de volta. Em um rosnado, disse:
_ O que você quer? Já não levou todas as suas tralhas?
Elodie começou a chorar; seu corpo dobrou-se sobre
si mesmo, como que contorcido por uma súbita dor de barriga. Por um momento ele
considerou se abaixar para acariciar seus cabelos, imaginou-se sussurrando
baixinho em seu ouvido, mas algo o fez hesitar. Lembrou-se do que ela havia
dito antes, “precisamos conversar”, e teve um presságio: ela veio dizer o
indizível. Elodie havia achado alguém melhor do que ele, alguém que não
precisava se vender diariamente para ganhar dinheiro, alguém bom, alguém digno.
Era isso. E isso ele simplesmente não podia suportar. Em menos de um segundo, a
confusão e a revolta arrebentaram soltas e agressivas, esguichando de seus
poros como água de uma mangueira.
Por conta do excesso de
adrenalina que seu corpo havia produzido naqueles poucos minutos, sua memória
do evento era imprecisa, arisca. Sabia que havia gritado com ela, com Elodie,
empurrando-a corredor abaixo, insultando-a de vadia traiçoeira e gorda imunda,
perguntando qual era o nome do filho da puta pra quem ela tava dando.
Lembrava-se também que, no apogeu de sua cólera, havia agarrado seus cabelos e
colocado-a para fora. Lembrava, tendo plena certeza de que para sempre
lembraria, do momento em que ela olhou-o com ódio profundo e cuspiu em sua
cara.
Elodie saiu correndo.
Jacques ficou parado na calçada da casa que comprara há milênios. Três horas
depois, a ligação da mãe de Elodie, histérica, dizendo que sua filha fora
atropelada e que havia perdido a criança.
_ “Que criança?” Perguntou
atônito, sentindo um pânico asfixiante embaçar seus sentidos. Depois vomitou, naturalmente. Depois
desmaiou.
___________
Pela primeira vez desde o acidente, sentado naquela cama quebrada,
Jacques deixou-se absorver inteiramente pelo fantasma que o perseguia desde
então: a culpa por ter ferido e mudado irreversivelmente a vida do filho e da
mulher que um dia amara, que talvez ainda amasse. Acolheu então a dor e,
chorando, convidou a escuridão.
De repente, Jacques, que em posição fetal se desintegrava, ouviu o
suspiro de uma voz melodiosa que cantarolava provocante:
Can…
Caaaaaannnn…
Com um sobressalto, reconheceu imediatamente a melodia e a voz do
cantor que, nos primeiros anos de sua adolescência, havia sido seu favorito. O
suspiro veio de novo, mais alto desta vez.
…anybody…
Era como se
Freddie estivesse ao seu lado, cantando as palavras que se desenrolavam
sedutoras. Sentiu então sua própria voz trêmula responder desobediente:
_find me…
A continuação
soou clara como água:
…somebody to love!
E lá estavam as inconfundíveis notas de piano que abriam a canção
tão famosa. Olhou ao redor do quarto, mas não viu nada. A canção, no entanto,
continuava e ele sentia um desejo insano de acompanhá-la:
… can barely stand on
my feet. Take a look in the mirror and cry, Lord, what you’re doing to me!
Jacques pôs-se de pé e andou em direção à porta.
I have spent all my years in believing you, but I just can’t get no
relief, Lord!
Somebody, somebody
Pelos corredores imundos da casa, ele, cantando, passou. Entrou na
garagem, embarcou no carro e todos os membros da banda embarcaram com ele:
Roger ao seu lado, Freddie no banco de trás, sentado entre Brian e John.
Everyday – I try and I try and I try – but everybody wants to put me
down; they say I’m goin’ crazy. They say I got a lot of water in my brain… Got
no common sense! I got nobody left to believe
Yeah – yeah yeah yeah
Parou na frente da casa de repouso onde Elodie havia sido internada
há alguns meses – não lembrava exatamente quantos. Como facilidade, ganhou
acesso aos corredores e seguiu em direção ao jardim. Tinha a distinta sensação
de que a encontraria lá. Ao seu redor, a música continuava otimista:
Got no feel, I got no rhythm. I just keep losing my beat…
Respondeu I’m ok, I’m alright
e continuou andando.
Começou a pensar que havia se perdido em um labirinto, quando
percebeu estar dentro de uma sala redonda, sem portas ou qualquer entrada
visível. Como havia ido parar ali se não havia nenhuma porta? Olhou ao redor
desesperado, como a porcaria de uma sala podia se colocar entre ele e seu
pedido de perdão, entre ele e seu destino?
“I just gotta get out
of this prison cell! Someday I’m gonna be free, Lord!”
Encostado na parede, o guitarrista tocava sua guitarra indiferente.
Jacques sentiu então algo pontudo sob seu pé esquerdo e, ao se abaixar pra ver
o que era, encontrou uma chave posta sobre sua fechadura, pronta para ser
girada.
Jacques então sentiu medo; toda a coragem que o trouxera até ali
desaparecera sem deixar rastro, e ele já não tinha mais certeza se queria mesmo
abrir aquela porta. Entretanto, naquele momento, descobriu em si a certeza de
que ele e Elodie só poderiam recomeçar suas vidas quando ele se explicasse,
quando ele pedisse perdão e se redimisse de alguma forma. Quando admitisse que,
acima de tudo, ainda a amava.
Find me. Somebody to love.
Find me. Somebody to
love.
Find me. Somebody to
love.
Find me .Somebody to
love.
Somebody, somebody,
Girou então a chave. Sob o peso do seu corpo, a porta cedeu e
pareceu alongar-se como uma prancha ou trampolim. Da sala redonda, os quatro
assistiram-no mergulhar na escuridão, suas vozes se alternando de forma
harmoniosa no último refrão:
Somebody, somebody,
Somebody find me
Somebody find me
somebody to love
Can anybody find me…
Somebody to
loooooooooooooove!
Jacques
mergulhou, e só abriu os olhos quando seu corpo não conseguia mais suportar a
falta de oxigênio.
Find me
Somebody to love.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Catarata
Você agora segura meu manifesto. Não é longo, por isso fique onde está, nem precisa sentar. Tampouco mudarei tua vida. Deixo este trabalho para os grandes intelectuais, para os poucos espíritos de sorte que chegaram nesse mundo com ideais bons o suficiente para influenciar as outras pessoas. Não. Eu sou um velho cansado, nada mais. Aos setenta e nove anos, vejo minha veias exaustas ainda trabalhando a pleno vapor enquanto na oncologia, vejo crianças carecas e sorumbáticas caindo como moscas. Percebe o que está errado?
São pessoas como eu e você, mas nunca poderão ver o zênite de suas vidas porque estarão de baixo da terra, vagando onde quer que os espíritos vão nos dias de hoje. Injustiça é o único termo que cruza minha mente. Considere todo o mundo e perceba que a coisa que mais nos diferencia é como gastamos as horas que temos. O problema aqui é que essas crianças não as têm: foram privadas de suas horas. E isso, meu bom rapaz, é uma bosta sem tamanho. Eu tenho sérias dificuldades em entender porque elas têm de sofrer com uma doença tão terrível enquanto um velho sem propósitos erra pelo mundo sem rumo, sem propósito. Chego todos os dias para uma casa vazia, onde apenas o fantasmas de risos infantis preenche o ar, onde fotos amareladas são os únicos resquícios de meus amores que passaram nessa Terra, deixando para trás apenas a saudade que abate os vivos.
Esforço-me para não parecer amargo em demasia, você conhece o tipo: aquele cara velho que só sabe torcer o nariz e bufar, reclamar da vida e das dores. Um português do romantismo, se assim preferir. Essa carta é o meu grito silencioso, um desabafo em rodapé. O mundo está errado. Tecnocracia, tecnomancia… chame do que quiser. Para mim, a humanidade apenas desistiu e abraçou o estado de filho da puta egoísta que todos temos, mas em níveis diferentes. Um número absurdo de pessoas morrem por desnutrição todos os dias. Pense nisso. Porra, essas pessoas sem rosto não consegue calorias o suficiente para sobreviver! Não caçam, plantam, colhem, pescam. Apenas deitam, sem forças, esmagadas pelo peso de sete bilhões de pessoas preocupadas com pouco mais do que o próprio umbigo, destroçadas pelo capitalismo e ignoradas pelo socialismo, tiveram o azar de nascer em um mundo que não lhes permitiu lutar. Ou caçar. Ou plantar. E o pior é que enquanto escrevo a carta-manifesto que você lê, espero meu disco de vitamina C terminar de diluir. E eu nem preciso dele. Tenho laranjas na geladeira e vou chupá-las mais tarde. Além do mais, não tenho câncer, então fico atrás de muitas pessoas na fila de reclamações.
Enquanto pessoas morrem de fome, nosso continente sofre com a obesidade. Mais pessoas morrem por excesso de comida do que por falta desta. Pare um pouco e pense nisso. Nós temos penicilina! Eu peguei síflis de uma prostituta quando tinha dezenove anos e tenho orgulho disso. Era um rito de passagem e criou importante laços com meu pai. Deveria estar morto há muito tempo, deformado pela doença francesa. Mas aqui estou. E com a pressão de meu sangue boa como a de uma criança. Você pode entrar em contato com qualquer pessoa hoje, precisando de pouco mais do que alguns cliques, pode fazer as compras pela internet, agendar dentista, médico, manicure. Qualquer coisa. O mundo está ao seu dispor, vinte e quatro horas por dia e, por causa disso, você provavelmente precisa sair da mesa apenas para correr até a academia por causa das calorias extras que você consumiu. Sua barriga é flácida, os músculos diminutos. Toda sua preocupação gira ao redor do nível de bateria do seu celular, mais inteligente que sua prole. Você é gordo, há tanta comida disponível que você consegue acumular gordura, caramba.
Hoje eu escutei uma enfermeira falando sobre os pacientes dizem no leito de morte. É um momento terrível e belo, ao mesmo tempo. Estive no leito de morte de muitas pessoas queridas e sempre foi algo doce e amargo. O desespero de uma longa doença chegando ao fim, quando o corpo está cansado e já entregou os pontos. Quando tudo foi dito e apenas o alívio está no futuro. Mas fica a dor, a saudade, a ausência. Um momento que define a paz para aqueles que se vão, que verdadeiramente aceitaram a partida, mas que machuca a quem não a aceitou. A enfermeira disse que sempre escuta as últimas palavras daqueles que estão morrendo sem a família ao redor e relatou alguns casos para as colegas. Eu fingi estar escolhendo um refrigerante numa máquina enquanto escutava a conversa. Há quem gostaria de ter trabalhado menos. Eu tirei minha sobrevivência daquilo que gostava e até hoje volto para o mar e lanço a linha na água; talvez algum dia desse o mar se revele meu eterno túmulo. Nada melhor para mim, uma morte salgada para uma vida vivida dentro de um barco. Outros dizem que gostaria de ter o próprio caminho ou que gostaria de ter mantido as amizades.
Bem, as pessoas se perdem algumas vezes. Mas na maioria do caso, um pouco menos de putaria e frescura seria o necessário. É o que acho. De novo, com poucos cliques você pode entrar em contato com seus amigos, novos e antigos. Não me venha chorar como uma garota. Junte o que há de orgulho e respeito dentro dessa casca que você chama de corpo e fale com seus amigos ou siga o seu caminho.
Vejo que minha carta não faz mais sentido. Poderia usar minha idade como desculpa, mas não. Estou mais lúcido do que gostaria de estar. Minhas palavras chegam desconexas pois são reflexão desse mundo em que vivemos, onde morremos cedo demais porque comemos em exagero, porque deixamos de nos movimentar pois vivemos diante de uma tela, onde não olhamos para os problemas dos outros pois estamos preocupados em conseguir mais atenção no facebook. O lugar em que morremos por tirar foto do velocímetro do carro, por digitar texto como animais irracionais em um aparelho enquanto dirigimos. Mais lúcido do que queria, repito.
É difícil controlar a fúria que carrego no estômago, que queima como o fogo de um dragão, como a fornalha do Titanic um dia queimou. Isso tudo porque vivo além do que deveria. Porque há crianças com câncer nos hospitais de todo mundo. É uma merda.
Se você ainda está lendo, peço desculpas: são palavras de um velho, um fantasma que ainda tem um corpo. Sou anacrônico e estou sendo apagado aos poucos pelo tempo. Nada tento provar com essas linhas, nada quero mudar em sua vida. Escolha seu caminho, cometa seus erros e coloque o máximo de força em seus punhos. As linhas que leu, e que quase chegam a um fim, são os fragmentos de meu pensamento; o entender do mundo vindo de um velho que nada mais entende.
Se você está lendo isso é porque eu estou morto. Mas não fique chateado por mim, bom rapaz. Eu já estou morto há tempos. Meu coração se transformou em poeira. Há poeira em meus pulmões e onde antes havia simpatia e compaixão.
Uma vez que perdemos a compaixão, meu caro, é melhor deitar e morrer.
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
A Hora do Demônio
As guitarras de Eric Clapton e Jeff Beck dedilhavam a ponte de Can’t Find My Way Home, fazendo as caixas de som pulsarem em harmonia. António Marín acompanhava o dedilhado em uma guitarra invisível, movendo os dedos e balançando a cabeça. Essa era uma vida que poucos conheciam. O negócio é o seguinte: António Marín tinha uma vida secreta. Aos diabos com isso, António Marín vivia três vidas pelo menos. “Mas eu não consigo encontrar meu caminho para casa”, cantarolou em português, fazendo um eco exógeno para a letra da música. Estava sentado no lado do motorista no pequeno carro britânico, parado em uma escura viela do centro de Oxford. Olhou para o relógio: três da manhã, a Hora Morta dos poetas; Hora do Demônio para os fanáticos religiosos e a Hora de Marín para Harry Gorgorith, o próximo nome de sua lista.
António desligou o rádio, sentindo uma tristeza por cortar a música durante o solo e desceu do carro, sem tirar os olhos do céu sem estrelas, talvez procurando por algo que deveria estar lá. Torceu a boca e se concentrou.
Maldita hora. Sempre agia às três da madrugada. Meia noite não funcionava para ele. Era a hora entre o bem e o mal, quando o mundo começa a se desligar e as pessoas deitavam em suas camas ou se preparavam para fornicar, talvez planejando o dia seguinte ou se fazendo preces para a prova de matemática. Meia noite e todos estão com um olho aberto e olhos abertos não são bons para a vida secreta de António Marín. Ao menos não para esta, veja bem. Uma, duas horas da madrugada e as ruas estão vazias, excluindo uma ou outra ronda policial, vigilantes comunitários, bêbados e pervertidos. São presenças indesejadas, almas perdidas que vagam pela noite, procurando suas presas, encontrando inocência para manchar e estuprar. Marín os desprezava e desejava colocar suas mãos nas gargantas sujas dos predadores noturnos. Mas não agora, não hoje. Mais tarde do que isso, cinco da manhã, digamos, e os padeiros estarão acordados. Talvez aquele aluno desesperado com a prova de matemática já está com o abajur ligado, tentando absorver as fórmulas ignoradas por meses a fio. Moleque imbecil.
Três da madrugada, caro leitor. Eis o sweet spot de António Marín, a hora e a vez de seu compromisso, os sessenta minutos do dia em que o tempo congela e Deus hesita em seu trono celestial, pestanejando com pálpebras pesadas. Era quando ele entrava em ação.
Marín andou nas pedras antigas e encharcadas da rua em que estava, equilibrando seu centro de gravidade para não escorregar. Chegou na pequena casa de número 1906 e parou, olhando ao redor. O mundo parecia deserto e ele sorriu. A Hora do Demônio, pensou. Retirou duas barras de metal retorcido e, mais rápido do que você imagina, destravou a porta e ganhou acesso para o interior. Olhou rapidamente para as paredes da pequena sala, certificando-se da inexistência de alarmes. Nada. E esse era o problema, na opinião de Marín: as pessoas se tornavam descuidadas, preguiçosas e, na maioria dos casos, prepotentes. Um sentimento de imortilidade normalmente atingia seus alvos, o que tornava seu trabalho - um dos trabalhos, vamos lembrar - fácil, tão fácil que chegava a ser entediante. O que não fazia sentido, em sua opinião, uma vez que para entrar em sua lista, o cliente tinha de estar metido na merda até o pescoço. Merda séria, do tipo que deixa corpos empilhados por todo o caminho. Nas pontas dos pés, avançou para as escadas e parou por duas vezes quando os degraus rangeram, os sentidos afiados em prontidão. Por todo o percurso, analisou os pequenos indícios que traduziam o cotidiano da casa. Os móveis estavam limpos - até mesmo a base do corrimão estava polido - e indicavam um ambiente bem planejado; havia latas verdes de heineken espalhadas na mesa de centro e na cozinha, onde diversas travessas descartáveis de refeições congeladas permaneciam jogadas e esquecidas, parcialmente amassadas depois de inúmeros jantares sem sabor e de nutrientes sem valor. Harry Gorgorith vivia à base de cerveja e pratos feitos, aparentemente. Caso precisasse lutar, não tinha expectativas de enfrentar um Jason Bourne. Novamente, o descuido. A ausência de brinquedos era um alívio. Não porque ele pensaria duas vezes em apagar um pai de família, António Marín estava acima dos laços sanguíneos ou da santidade do seio familiar. O alívio existia por que crianças significavam imprevistos. Crianças têm o péssimo costume de acordar na Hora Morta para fazer xixi ou correr até a cama dos pais, chorando por causa de um pesadelo ou querendo água. Mesmo entediado, Marín não tomaria nenhum prazer em assassinar crianças.
Empurrou a porta semi-aberta e entrou no quarto de Harry Gorgorith. Ele roncava alto, a barriga inchada subindo e descendo com regularidade. Na Hora Morta, todos estão em REM. Harry dormia sozinho e Marín descartou qualquer outro morador na pequena casa. Viu o passaporte russo de Gorgorith ao lado da escrivaninha, o único documento que o colocava naquele país. Marín abriu um zíper de sua jaqueta e recolheu o passaporte, o que daria algumas horas de vantagem sobre a polícia, que precisaria recorrer a medidas mais demoradas para identificar o corpo de Gorgorith.
António Marín ficou parado no meio do quarto, como a sombra do ceifador observando o sono pacífico de sua próxima vítima. Harry dormia o sono dos justos, enquanto cometia atrocidades no submundo político, prejudicando uma longa lista de nomes inocentes. Podia contar ao menos quinze pais de família que conhecia, homens corretos e honestos que perdiam o sono, tentando decidir qual conta pagar e qual serviço seria cortado, água ou gás. Um mundo justo, ele pensou com uma pontada de ira no peito. Marín não sabia ao certo, era parte de seu trabalho resolver problemas com o mínimo de conhecimento, mas era sempre motivo político. Ficava atento aos noticiários logo depois de um contrato e sempre descobria que o morto estava metido em um ou mais escândalo parlamentar. Harry Gorgorith era um homem sujo, mas ele não sabia o quanto. Era uma ignorância cronológia, bem sabia.
Repentinamente, Harry sentou na cama epuxou a gaveta do criado mudo ao seu lado. O assassino viu a arma, uma pistalo .22 provavelmente carregada e engatilhada, e puxou a própria pistola, uma Desert Eagle monstruosa. “Eu não faria isso, Harry. Seria uma escolha… prejudicial para a sua saúde. Você não precisa morrer hoje”, mentiu.
“Quem… quem te mandou?”, Harry perguntou com a voz letárgica e carregada por um sotaque pesado, “foram eles, certo? O Círculo. Eu sabia que esse dia chegaria.”
“Vamos lá, meu chapa, solte essa arma, você não quer continuar apontando ela para meu peito. Eu costumo ficar ofendido com pessoas que me deixam na mira. Estou aqui para te dar um recado.”
“E como sei que você não vai me matar, seu merdinha. Eu não tenho medo de você… ou do Círculo. Apenas uma pessoa sairá daqui hoje. E logo depois, vou pegar um por um deles, hoje mesmo, antes que eles saibam que o… o assassino que eles contrataram falhou. Filhos de uma puta.” A mão de Harry tremia.
“Você quer abaixar a arma, sério”, Marín advertiu. “Meu dedo é bem mais rápido que o seu, tenho certeza. E depois o quê, Harry, hein? Você vai colocar uma calça nessa sua bunda gorda e perseguir todo o Círculo?”, Marín não tinha idéia do que falava, sabia apenas que precisava blefar se queria evitar que Harry disparasse em seu peito. “Nós dois sabemos que você não conseguirá passar pelo primeiro segurança da primeira casa, cara. Estou aqui para te dar uma nova chance. Você fodeu tudo, cara, cagou em todo o plano. Eles me mandaram para te fazer desaparecer… não mate o mensageiro, certo? Pegue seu dinheiro, suas coisas e suma. Mude o nome, tinja o cabelo. Vá vender pranchas de surf em Porto Rico, vá dar a bunda, não me importo com o que você irá fazer daqui em diante. Desde que suma daqui. Nessa noite, hoje. Se você disparar agora, pode ser que erre, pode ser que me mate. E mesmo que acertar, pode ser que eu consiga disparar. Já viu uma Eagle cuspindo bala? Não sobra nada, cara. Caixão fechado, porra. Então, a não ser que você tenha nascido com esse cu feio virado para a lua, abaixe a porra dessa arma. AGORA!”
Harry Gorgorith não se sentia com sorte e abaixou a arma. Obedeceu, em seguida, ao movimento do homem que estava no seu quarto no meio da noite - procurou pelo relógio que tinha na parede: três e quinze da manhã, um horário injusto para ser despertado pelo seu anjo da morte - e jogou a arma para o pé da cama. “Eu vou, eu vou.” António guardou a arma e Harry suspirou, aliviado. Levantou-se para começar a fazer a mala e comprar o primeiro vôo para a Terra do Nunca, quando sentiu falta do passaporte. Voltou-se para sua arma, tarde demais. Harry Gorgorith nunca viu os dois disparos que destruíram seu cérebro e espalharam massa cinzenta ao redor de seu corpo.
Ele largou a arma de Harry, achando conveniente que ele tinha uma pistola com o número de série raspado e silenciador rosqueado. A Desert Eagle deixaria seus ouvidos doendo e despertaria metade de Oxford. “Obrigado, Harry”, ele disse antes de largar a arma no chão e disparar para o carro.
O pequeno carro inglês pegou na primeira tentativa e ele começou a dirigir para Londres, onde estava hospedado. Escutou músicas antigas por todo o percurso, de Creedence até Queen, passando por Beatles e The Who, cantando as letras em uma tradução simultânea para o português. No caminho, parou para queimar as roupas e as luvas que usava, trocando-se rapidamente para não congelar no rigoroso inverno britânico. Quando parou, olhou para os céus novamente, como se estivesse procurando por algo.
Quando chegou no hotel, António Marín discou para um número e desligou em seguida, retirando a bateria do celular e quebrando o pequeno chip no meio. Missão cumprida com louvor.
Aquela vida de António Marin estava enterrada por mais alguns meses e ele poderia voltar para o Brasil, assumindo novamente sua vida de comerciante de calçados. António Marín, o pai dedicado, vendedor de calçados ortopédicos e Maçom de alto nível hierárquico, um homem que todos conheciam. Poucos conheciam o António Marín apaixonado por miniaturas e ferroramas e meia dúzia de pessoas em todo o mundo conhecia António Marín, o melhor assassino do mundo. Ele não deixava rastros, não fazia pergunta e não mostrava clemência.
Ele empurrou a porta de correr da gigantesca sacada - amava o luxo e sempre ficava nos melhores quartos quando estava trabalhando em um contrato, outro António Marín que pouquíssimos conheciam - e olhou para o céu, sentindo o coração pular uma ou duas batidas com o que viu. Um frio escalou em sua espinha e fez todo seu corpo arrepiar, descarregando uma enorme quantidade de adrenalina. Aquela, caro leitor, era a vida secreta de António Marín que apenas António Marín conhecia.
Durante toda sua infância, nos momentos que definiram suas várias vidas paralelas, Marín via gigantescos números no céu. A primeira vez, o número 54 em letras garrafais, apareceu quando seus pais morreram em um acidente. Ainda se lembrava do momento, os olhos cheios de lágrimas, ranho escapando pelo nariz avermelhado, olhou para cima e achou que estava tendo ilusões, que estava em choque. Em pouco segundos o número desapareceu. Alguns meses depois, enquanto pulava de adoção para adoção, ele via os números no céu, gigantes como planetas colossais em rota de colisão com a Terra. Também avançavam: 55, 56, 60. Ele era o único que os via piscando no céu, dia ou noite. Mas sempre que vivia momentos importantes, para o melhor ou pior, vitórias ou derrotas, eles apareciam sem falha. Seu recrutamento pelo Mossad (120) e, anos mais tarde, quando executou todos os que conheciam sua verdadeira identidade (140, 142, 147 e 148) para desaparecer e iniciar uma carreira autônoma (155).
Depois de seu primeiro assassinato solo (183), Marín entendeu o que eram os números e uma certeza se instalou em seu cérebro. António Marín, o homem que colecionava miniaturas de trens e vendia sapatos para crianças de pernas tortas, o assassino profissional procurado pelo Mossad era, acima de tudo, o antagonista de um livro. Os números que via no céu eram as páginas que desenvolviam o papel que deveria seguir, era a única explicação plausível. Aos poucos descartou a idéia de ser apenas um personagem em um grande livro, não, ele era bom demais para ser secundário. Tampouco poderia ser o protagonista: faltava-lhe carisma, determinação. Tudo que queria era ver crianças de postura saudável e fechar contratos que o enriqueciam em escala astronômica. António Marín, senhoras e senhores, era o antagonista daquela história… desta história. E, pelos deuses, daria tudo de si para ser o melhor antagonista que o mundo já conhecera.
Apoiado na parapeito da sacada, Marín admirava o único número estampado no céu de Londres (1). O sol nascia e número (1), perto do London Eye, se tornava alaranjado. Estava no início do livro, podia visualizar o parágrafo que abria sua história: António Marín observou Londres acordar. Deixava o conhaque descer por sua garganta, queimando seu estômago e aquecendo seu corpo, regozijando-se pelo trabalho bem feito. Repassou rapidamente a madrugada anterior em sua mente, à procura de falhar, mas sabia que seu trabalho era perfeito. Ele era, afinal, o melhor assassino para contratar e suas execuções eram perfeitas. O que António Marín não sabia era que acabava de sair da excessão que comprovava a regra. Talvez estivesse ficando descuidado - adjetivo que dava para seus alvos - ou cansado, mas falhou em reconhecer as pontas soltas.
Ergueu o copo de conhaque que surgira em sua mão e brindou o autor. Note como ele parece olhar para você, veja como ele pisca um único olho em sua direção, um olhar sádico, lunático… perigoso.
O número 1 desapareceu e ele ficou assistindo o sol nascer para mais um dia. Mais um dia na vida de todos aqueles que permaneciam no jogo.
Mais um dia para a grande maioria dos vivos, mas o dia em que a vida de António Marín começava de verdade. Mal podia conter a curiosidade que tinha no fundo da mente. Apostava consigo mesmo até qual página conseguiria chegar vivo.
António Marín voltou para o quarto e se jogou na cama, precisaria descansar o máximo possível: sua verdadeira vida secreta começava agora.
(Fim do Capítulo 01)
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